terça-feira, 26 de julho de 2011

Por falar em antropofagia

Affonso Romano de Sant’Anna



         A FLIP deste ano escolheu fazer uma homenagem a Oswald de Andrade e à antropofagia. É merecida a lembrança de um dos ícones da Semana de Arte Moderna. Chamaram até Antônio Cândido, 92 anos, para fazer um depoimento. O mestre da USP que conviveu com Oswald, é um dos raros casos de  equilíbrio crítico sobre o autor de “João Miramar”. Consegue, afetuosamente, ver seus defeitos e virtudes. Liquida logo aquela ideia de que Oswald era um pensador, um “filósofo”. Na década de 50, desaconselhou o poeta a candidatar-se à cátedra de filosofia, pois não  via nele um  pensamento conseqüente, apenas intuições mais ou menos luminosas.  Como Oswald mesmo confessaria no seu diário, era um “bricoleur da cultura”. Portanto, esta deveria ser também uma oportunidade para se rever a obra e o pensamento daquele que causou certo furor em  algumas tribos nacionais.

         Fazer isto não desmerece necessariamente as pessoas, mas esclarece a história. Heitor Martins, por exemplo, já em 1968 escrevia um ensaio em que mostrava que  a ideia da antropofagia de Oswald era tributária dos vanguardistas europeus. Marinetti e Picabia trabalharam essa metáfora. Oswald foi várias vezes à Europa e conviveu com os vanguardistas. O “Manifesto Canibal” de Francis Picabia é de 1920.

         Portanto, o  movimento que alguns pensam ser essencialmente brasileiro, não o era. E possivelmente Oswald nunca viu  um índio, ao contrario de Mário de Andrade que, numa carta a Manuel Bandeira dizia que Oswald “se preocupa em fundar escolas e propagar novidades que não são dele”.

         Que a teoria da antropofagia tem um certo charme, isto tem. Um belo marketing. No passado dei muita aula sobre isto e o assunto me seduz tanto que fiz um livro- “O canibalismo amoroso”.  Para usar a metáfora canibal,  eu diria que Oswald deve ser devorado, não adorado. E quando a gente se banqueteia ou come algo, tem sempre umas partes indeglutíveis.

         A teoria da antropofagia que seduziu  alguns tribos locais não resiste à uma análise nem aos fatos. Foi curiosa há cem anos. Sobre ser  característica universal e não especificamente brasileira, hoje com a globalização estamos todos sendo devorados, índios e civilizados.

         Lembro-me de ter recebido a visita de Haroldo de Campos em Los Angeles nos anos 60. Um dia, num restaurante em Westwood, ele, que era siderado na teoria da antropofagia, me disse que estava perplexo ao constatar como os americanos, mais que os brasileiros, devoravam todas as culturas.

         Andei relendo umas coisas sobre Oswald/Antropofagia. E acho que esse assunto tem que ser revisto. Li o diário que ele escreveu nos  últimos anos de vida. É melancólico e sincero. Tem lá coisas engraçadas: Antonio Cândido não foi convidado para ouvir Neruda recitando poemas, porque era considerado, pelos stalinistas, um trotskista.

         Lembrei-me que nos anos 70, Marília, filha de Oswald, lecionava  na PUC/RJ e disponibilizou o material inédito e rascunhos que estavam em algumas caixas em sua casa. Fizemos uma histórica exposição. Mas havia qualquer coisa de triste naqueles papéis desamparados.  Oswaldo, dispersivo nos amores e criações, não era um colecionador narcisista.

         Oswald não era o grande poeta,que alguns dizem ser, mas um captador de “roteiros”, um agitador, um gênio fecundante que fazia um par de opostos com Mário de Andrade. Curiosamente ele gostava de Catulo da Paixão e cita Cassiano Ricardo como grande poeta brasileiro e silencia sobre Drummond ou Cabral.

         Mas a coisa intrigante no famoso “Manifesto da Antropofagia “ escrito em 1928 é a data: “Em Piratininga, Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”. Parece equivocada, pois sendo o aludido bispo devorado em 1556, teria que ser 372 e não 374. Mas há outra questão intrigante: não há provas de que os índios caetés tenham devorado o religioso. Há quem diga que foram os tupinambás. Mas outros sustentam que o bispo nem foi devorado, que o seu sumiço   foi resultado de um conflito de terras. O fato é que depois que se espalhou que os caetés tinham cometido aquela atrocidade, os brancos tomaram suas férteis terras. Ou seja, os brancos é que devoraram os índios.

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