domingo, 19 de outubro de 2014

Opinião

A FEIRA DO LIVRO ASSOMBRADA
 
 
Editor responde a artigo do Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre RS,
Airton Ortiz, e reafirma as críticas à publicação de livro
de ex-agente do DOI-CODI

 
Com a escolha do patrono da 60ª Feira do Livro de Porto Alegre, a Câmara Riograndense do Livro dá razão a uma hipótese preocupante: a de que um livro negacionista da tortura no Brasil e assumidamente racista não tem importância na biografia de seu patrono escolhido.

O próprio patrono, Airton Ortiz, sugere isso, em torrencial artigo de autoelogio publicado neste mesmo caderno, no dia 12 de outubro, no qual numa tarabiscoitada pirueta de palavras sai pela tangente da publicação do livro Brasil Sempre, escrito por um ex-agente da ditadura e editado pela editora então de propriedade do patrono, em 1986. Pelo que se depreende do artigo - muito semelhante, curiosamente, a uma carta em papel timbrado que a Câmara Rio-Grandense do Livro fez circular defendendo a sua escolha, assinada por outra pessoa -, Ortiz conclui que seu ato de edição e difusão do livro não teve importância no conjunto de sua trajetória.

Brasil Sempre, o livro em questão, nega o que vem sendo revelado com detalhes e crueza chocante, como o atentado que vitimou Zuzu Angel e os bastidores de assassinatos como o de Wladimir Herzog, nas celas do DOI-CODI. O próprio patrono, no artigo publicado neste caderno na semana passada, constata as dificuldades da Comissão da Verdade em esclarecer todos os episódios. A publicação de Brasil Sempre contribuiu para tornar a névoa sobre essa memória ainda mais espessa.

Segundo a Câmara Rio-Grandense do Livro, tal edição realizada pelo patrono seria uma manifestação positiva de democracia e de tolerância ao dar a voz ao militar opressor, o araponga e porta-voz da força discricionária (ainda durante o tempo da Ditadura e a sua transição sob imposição do medo coletivo). Quem se der ao trabalho de ler o livro, contudo, verá que o editor deu voz e papel para que o autor, de forma subjetiva e sem documentação, afirmasse a ação branda da ditadura em sua própria defesa (auto-alegada legítima), ocultando casos relatados, testemunhados e documentados de torturas, violência, terror e assassinatos.

O autor de Brasil Sempre não tem pruridos em ser extremamente racista (nas páginas 63, 65, 67 e 72); em atacar a Igreja chamando de mentirosos a tantos religiosos que procuravam esclarecer os fatos e consolar suas vítimas, inclusive o Cardeal Dom Evaristo Arns (nas páginas 73, 95, 107, 113, 206 e 207 ); em elogiar o ditador Emilio Garrastazu Médici por suas ordens violentas (página 87) e o general Golbery do Couto e Silva pela criação do SNI e DOI-CODIs (página 100); em ameaçar com o terror, recrudescimento da força militar e novo golpe, caso Leonel Brizola viesse a vencer eleições presidenciais (página 80); em afirmar que todo intelectual de esquerda é mentiroso (página 251); em considerar Paulo Maluf o único político confiável no Brasil (página 242); em solicitar "apoio irrestrito" e financeiro de empresários , proprietários rurais e chefes de família à TFP (organização direitista Tradição, Família e Propriedade) (página 243); e em lamentar-se por não existirem guerras confiadas aos militares brasileiros (página 245).

Publicar um livro favorável à ditadura em tempos de ditadura costuma ser proveitoso para alguns, especialmente em termos financeiros. O patrono alega hoje, peremptório na oratória em sua defesa, que o autor ficou preso por 10 dias por motivos políticos, pela audácia desta publicação. É mentira. De forma singela, o próprio autor informa na página 251 do livro Brasil Sempre que isso iria ocorrer, não por alegada motivação política ou por revelação de fatos sigilosos (que ali não estão), mas por infração ao Regulamento Disciplinar Militar, pelo qual deveria ter informado ao seu superior hierárquico militar a decisão pela publicação e não o fez, acarretando a possibilidade da punição regimental.

O patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, editor deste livro abjeto, vangloria-se de ter vendido 20 mil exemplares de tal panfleto destituído de literatura e imaginado para a difusão de ideias fascistas e derrisórias para a Humanidade. Num cálculo rápido constata-se que o editor amealhou uma quantia considerável com o feito polêmico. Tudo muito conveniente e muito confortável, porém o patrono considera que isso não tem importância.

Ao se alinhar a tal tese, a Câmara Rio-Grandense do Livro, solidária a seu patrono, profere um insulto aos que foram agredidos com torturas, aos que foram assassinados e feridos pela ditadura militar. A tortura e a difusão da negação de tortura são crimes contra a Humanidade e não têm prazo de prescrição, podendo e devendo ser apontados e julgados a todo instante, para a proteção da liberdade e da dignidade humana.

Triste, conforme sugere o patrono no seu artigo, será justamente ter lido este livro inútil e desnecessário. Triste igualmente é o uso que o editor faz em seu texto, para abonar sua conduta, do nome de Olívio Dutra, ex-governador e ex-ministro de Estado - justamente o alvo primário das missões de espionagem e monitoramento sistemático realizados pelo agente do DOI-CODI autor do livro Brasil Sempre. Será que Olívio Dutra deu sua aquiescência ao patrono para uso de seu nome no texto publicado em 12 de outubro pelo jornal ZH, para restaurar a imagem estilhaçada do editor e patrono?

Dessa maneira e por esta decisão com relação à escolha de seu Patrono, a Feira do Livro de Porto Alegre torna-se a Lua. Tem um lado luminoso, de luz refletida pelas ambições do mercado, os números dos recordes de vendas, pelo frenesi alucinado do consumo e possui um lado oculto, assombrado. Um lado escuro e glacial no qual estão cuidadosamente escondidos estes deslizes monstruosos.

Para este lado de exclusão também estão removidos e olvidados tantos livros, autores, autoras e artistas que foram perseguidos, torturados, exilados, censurados e feridos pela ditadura militar, pelo deliberado esquecimento do fato repulsivo - a publicação do livro de elogio à ditadura e seus feitos. Ao sagrar seu editor patrono, a Câmara carimba e marca a estes tantos autores e obras com a etiqueta do que igualmente também não tem importância. E os afasta da 60ª Feira do Livro de Porto Alegre.
No entanto, entre esses excluídos estão autores e autoras brilhantes (não será necessário citá-los) com obras primas importantes na Literatura brasileira e para um público que ainda aprecia livros e leitura. Será que tudo isso, de fato, não tem importância?

Alfredo Aquino - artista plástico, escritor e editor.

CATIVO - Pintura em óleo sobre tela (1980), de Alfredo Aquino; exposta em individuais no MASP São Paulo (a convite do Prof. Pietro Maria Bardi) e no MARGS Porto Alegre, ao tempo da ditadura militar. Acervo do MARGS Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli - Porto Alegre RS

Reprodução fotográfica: Fabio del Re / Carlos Stein MARGS
Caderno PROA - Jornal ZH - Porto Alegre RS - 19 de outubro de 2014

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse é o editor de candidato derrotado a patrono e parece que tem problemas com a Câmara Rio Grandense do Livro. É interessante conhecer as razões que ele tem para odiar a Feira do Livro.
Jorge Augusto