sexta-feira, 23 de março de 2012


Ato Institucional Permanente


A Carlos Heitor Cony



Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.

que agora vale a vida,

e que de mãos dadas,

trabalharemos todos pela vida verdadeira.


Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

têm direito a converter-se em manhãs de domingo.


Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito

a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

abertas para o verde onde cresce a esperança.


Artigo IV.
Fica decretado que o homem

não precisará nunca mais

duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem

como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar,

como o ar confia no campo azul do céu.


Parágrafo Único:
O homem confiará no homem

como um menino confia em outro menino.


Artigo V.
Fica decretado que os homens

estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa.


Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,

a prática sonhada pelo profeta Isaías,

e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.


Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade,

e a alegria será uma bandeira generosa

para sempre desfraldada na alma do povo.


Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor

sempre foi e será sempre

não poder dar-se amor a quem se ama

e saber que é a água

que dá à planta o milagre da flor.


Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia

tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha sempre

o quente sabor da ternura.


Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,

a qualquer hora da vida,

o uso do traje branco.


Artigo XI.
Fica decretado, por definição,

que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo.

muito mais belo que a estrela da manhã.


Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.

tudo será permitido,

inclusive brincar com os rinocerontes

e caminhar pelas tardes

com uma imensa begônia na lapela.


Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.


Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro

não poderá nunca mais comprar

o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,

o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

para defender o direito de cantar

e a festa do dia que chegou.


Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.



Santiago do Chile, abril de 1964


Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar 1965.


In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198

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