terça-feira, 31 de março de 2015

Crônicas da Paiagem



CRÔNICAS DA PAISAGEM (9)


.torres RS (ou S.A.)
Março de 2015



Quando deparamos com um enunciado escrito com caracteres estranhos, percebemos que há nele algum sentido, mesmo que não o entendamos. Seu significado exato nos foge, mas é evidente que em seus ritmos internos, há uma mensagem cifrada. Diante dessa situação, podemos simplesmente virar as costas, e isso aparentemente não fará diferença alguma. Mas se, pelo contrário, desconfiarmos de que neste enunciado há algo que nos diz respeito, possivelmente faremos tentativas que nos permitam iniciar um diálogo com ele. Mas para estabelecer uma mínima conexão com seus sinais, é necessário que estejamos disponíveis para buscar contato com o fluxo criativo que o gerou. Na mensagem acima, não há nada escrito. Mas seus sinais se encadeiam de acordo com uma lógica interna que é fácil identificar. Há aí algo sendo dito, mas sem palavras.

Admitamos agora que esse enunciado possa ser comparado com uma paisagem intocada, ou seja, fruto de um fluxo criativo de origem não humana. Da mesma forma que o enunciado gráfico, podemos virar as costas para a mensagem sem palavras que esta paisagem emite. E isso aparentemente também não fará diferença alguma. Engano.

Virar as costas para uma paisagem pode ter profundas consequências sobre nossa percepção de mundo. Ignorar o seu significado pressupõe o direito de transformá-la indefinidamente. E às vezes essa transformação é tão brutal, que sequer restam vestígios do enunciado original, fruto de um fluxo criativo que nem chegou a ser conhecido.

A cidade litorânea de Torres, no sul do Brasil, exemplifica de maneira dramática a violenta transformação que a sociedade industrial vem impondo à superfície do planeta. Sem ter conhecido minimamente o seu território, esta cidade tem sido vítima de um modelo de crescimento que não consegue mais reconhecer limites. Situada em um cenário natural privilegiado, que lhe confere um invejável potencial turístico, Torres demonstra uma constrangedora dificuldade de diálogo com seu próprio território. A paisagem de Torres, na verdade, é um conjunto de belíssimos ecossistemas encadeados, que conferem sentido uns aos outros. Praias, falésias, dunas, lagoas, rio, remanescentes da Mata Atlântica e o imponente perfil da Serra Geral que desponta a oeste, falam um complexo e sutil idioma que poucos têm disposição para entender. Como resultado disso, um idioma repleto de angulosidades está se disseminando por todos lados, impondo à cidade um ritmo novo, inorgânico, rígido.

Desde o ano passado, observo a oeste da Torres, o recorte suave da Serra Geral, uma importantíssima referência visual sendo gradualmente bloqueada pelas construções. O contato com esta evidência geológica que testemunha o passado mais remoto de toda região, está se rompendo, como se não fizesse diferença alguma... No leste, as torres rochosas que conferiram o nome à cidade, vem sofrendo uma severa perda de escala, diante de gigantescas torres de concreto que surgem da noite para o dia, com severas e mal dimensionadas implicações para o potencial turístico da cidade.

Entretanto, no morro do Farol, berço de Torres, os vestígios de um outro idioma humano resistem diante da especulação imobiliária. São pequenas casinhas, que junto com a igreja São Domingos, a mais antiga de todo litoral norte do Rio Grande do Sul, amenizam um pouco a dureza do cenário das torres artificiais. Sinto então que essa singela igrejinha emana uma força silenciosa, que observa solenemente a feroz disputa por horizontes. Essa Torres remanescente, que nos vincula fragilmente ao passado, emerge então com uma beleza que parece um sopro de esperança num outro futuro.

E subitamente percebo o quanto me sinto incapaz de ver beleza na maior parte da cidade, tomada por uma lógica que não me sugere diálogo algum. Sinto então uma imensa vontade de viirar-lhe as costas. Mas não consigo. Sou impelido a tentar traduzir essa Torres de concreto. Procuro identificar alguma espécie de diálogo entre as construções, algum sinal que aponte um propósito paisagístico que leve em conta o benefício de todos. Mas não consigo. Continuarei tentando.
Jorge Herrmann

A "Crônica da Paisagem" é um esforço pela valorização das paisagens naturais, como forma de conquistar um futuro verdadeiramente sustentável para todos. Para ver esta crônica na íntegra, acesse www.jorgeherrmann.com

 




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