Porto Alegre, 18 de Janeiro de 2014
A morte do poeta
Quando morre o poeta algo se cala. Mas o quê? A alma? O imaginário? A lua? Morreu Juan Gelman, poeta argentino, que vivia há 20 anos no México. Morreu Juan Gelman, o poeta que enfrentou a ditadura, teve o filho e a nora sequestrados e uma neta, nascida durante o regime militar, desaparecida, depois, felizmente, encontrada pelo avô. Morreu o poeta que ganhou o prêmio Cervantes em 2007. Morreu o homem que escreveu “Debaixo da chuva alheia” e foi condenado à morte, como observou o jornalista Clóvis Rossi, por militares e guerrilheiros.
Quando morre o grande poeta algo se cala. O quê? A massa que o desconhece, a cidade que o ignora, a época que despreza a poesia, a cultura que só vive de mercadorias. Morreu o poeta que disse: “Claro que morrerei e hão de levar-me/em ossos ou cinzas/
e dirão palavras e cinzas/e eu hei de morrer totalmente”. Pode um poeta morrer totalmente? A morte total já não é a morte da poesia e o silêncio sobre a morte do poeta?
A poesia é como a chuva, ou pior do que ela, talvez melhor, um incômodo tornado invisível, que Gelman soube capturar: “Hoje chove muito, muito,/dir-se-ia que estão a lavar o mundo./O meu vizinho do lado vê a chuva/e pensa em escrever uma carta de amor/uma carta à mulher com quem vive/e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele”. Essa forma de poesia tão cotidiana é paradoxalmente expulsa do cotidiano. Quem a lê? Quem a cita? Por que a poesia foi expulsa da cidade? Por que ser poeta arranca sorrisos nos cantos das bocas e uma espécie de pena?
Quando morre o poeta ele vive por alguns segundos, o tempo de um necrológio: “Por isso o meu vizinho tem/tempestades na boca/palavras que naufragam/palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na/
mesma noite em que ele amou/e deixam cartas no pensamento/que ele nunca escreverá/como o silêncio que existe entre duas rosas”. Quando morre o poeta desaparecem um pouco mais os seres capazes de falar do “silêncio entre duas rosas”. Aí restam os cronistas anacrônicos, anacoretas, androides, anencéfalos, como eu, para chorá-los a distância, sabendo que o poeta pode morrer de novo antes do fim de uma crônica, se o leitor abandonar o texto, entediado, para falar de um assalto.
Quando morre o poeta nada acontece. O máximo que um grande poeta pode esperar é que, um dia, alguém, um vândalo, suje a sua estátua. A poesia é a gastura da palavras, a consumição do verbo, essa coisa que não termina em gol nem em pódio. Quando morre o poeta, aos 83 anos, carregam um velho num caixão e dizem sobre ele algumas palavras que se transformarão logo em cinzas, até serem lavadas pela chuva e esquecidas pelo vizinho às voltas com o que dizer para a mulher que ainda o ama.
Gelman foi grande. O que é ser grande num mundo pequeno no qual a poesia já não cabe a não ser como uma rugosidade, essa estranheza do ser? Entrar numa manchete? A Argentina decretou três dias de luto por seu poeta morto. A chuva perdeu o seu melhor intérprete. Haverá por alguns minutos talvez um novo silêncio entre as rosas.
Quando morre o grande poeta algo se cala. O quê? A massa que o desconhece, a cidade que o ignora, a época que despreza a poesia, a cultura que só vive de mercadorias. Morreu o poeta que disse: “Claro que morrerei e hão de levar-me/em ossos ou cinzas/
e dirão palavras e cinzas/e eu hei de morrer totalmente”. Pode um poeta morrer totalmente? A morte total já não é a morte da poesia e o silêncio sobre a morte do poeta?
A poesia é como a chuva, ou pior do que ela, talvez melhor, um incômodo tornado invisível, que Gelman soube capturar: “Hoje chove muito, muito,/dir-se-ia que estão a lavar o mundo./O meu vizinho do lado vê a chuva/e pensa em escrever uma carta de amor/uma carta à mulher com quem vive/e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele”. Essa forma de poesia tão cotidiana é paradoxalmente expulsa do cotidiano. Quem a lê? Quem a cita? Por que a poesia foi expulsa da cidade? Por que ser poeta arranca sorrisos nos cantos das bocas e uma espécie de pena?
Quando morre o poeta ele vive por alguns segundos, o tempo de um necrológio: “Por isso o meu vizinho tem/tempestades na boca/palavras que naufragam/palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na/
mesma noite em que ele amou/e deixam cartas no pensamento/que ele nunca escreverá/como o silêncio que existe entre duas rosas”. Quando morre o poeta desaparecem um pouco mais os seres capazes de falar do “silêncio entre duas rosas”. Aí restam os cronistas anacrônicos, anacoretas, androides, anencéfalos, como eu, para chorá-los a distância, sabendo que o poeta pode morrer de novo antes do fim de uma crônica, se o leitor abandonar o texto, entediado, para falar de um assalto.
Quando morre o poeta nada acontece. O máximo que um grande poeta pode esperar é que, um dia, alguém, um vândalo, suje a sua estátua. A poesia é a gastura da palavras, a consumição do verbo, essa coisa que não termina em gol nem em pódio. Quando morre o poeta, aos 83 anos, carregam um velho num caixão e dizem sobre ele algumas palavras que se transformarão logo em cinzas, até serem lavadas pela chuva e esquecidas pelo vizinho às voltas com o que dizer para a mulher que ainda o ama.
Gelman foi grande. O que é ser grande num mundo pequeno no qual a poesia já não cabe a não ser como uma rugosidade, essa estranheza do ser? Entrar numa manchete? A Argentina decretou três dias de luto por seu poeta morto. A chuva perdeu o seu melhor intérprete. Haverá por alguns minutos talvez um novo silêncio entre as rosas.
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