sábado, 20 de dezembro de 2014

Lina Bo Bardi


LINA BO BARDI E O SENTIDO DA ARQUITETURA

 A modernização do país idealizada nos anos de 1920 vem a tona na segunda metade da década de 50. Com a derrota da seleção brasileira na copa do mundo no Brasil e o suicídio do presidente Getúlio Vargas, o brasileiro perde a autoestima e mergulha na tristeza. A eleição do presidente Juscelino Kubitschek, em 56, e seu projeto desenvolvimentista inaugura no país uma nova era, a cultura brasileira assume uma posição de vanguarda. No mesmo ano da posse de JK acontece o lançamento da arte e da poesia concreta. Flávio de Carvalho escandaliza com a invenção da roupa para o homem dos trópicos, desfila no centro comercial em São Paulo de mini saia e meias de bailarina.
O brasileiro recupera a alegria e a confiança com a vitória da seleção brasileira na Europa em 1958, com um futebol arte que subverteu as regas do futebol europeu e encantou o mundo principalmente nas pernas tortas de um bailarino da bola muito mais preocupado com o riso do que com o gol, Mané Garrincha, sem esquecer o talento do jovem Pelé. O sonho de Brasília vira realidade. A arquitetura moderna, a Bossa Nova e o Cinema Novo confirmam a modernidade do Brasil.
Na Bahia, o governador Juracy Magalhães e o reitor Edgar Santos são os agentes fundamentais desse processo de modernização e da produção cultural no Estado, quando a Universidade tinha uma participação mais decisiva no cotidiano da cidade. É nesse ambiente que Lina Bo Bardi desembarca em Salvador trazendo uma bagagem com as referências da arquitetura moderna europeia, desconfiada com o funcionalismo e da linguagem formal e objetiva desprovida de significados capazes de promover a identidade cultural. Desconfiança que o filósofo alemão Heidegger já havia diagnosticado com muita propriedade quando afirmou que a crise da arquitetura não era uma crise de alojamento e sim uma crise do sentido do habitar.
A presença de Lina foi decisiva não só para a arquitetura mas para a cultura baiana que ensaiava a modernidade. E o impacto das matrizes da cultura popular do Nordeste foi marcante na transformação da obra de Lina. Com certa distância, faz me lembrar a experiência de Hélio Oiticica, quando sobe o morro da Mangueira com a arte construtiva: Mondrian, Malevith mais fenomenologia de Merleau-Ponty na cabeça e lá encontra o samba, redescobre o corpo e volta para o asfalto ou para a zona sul carioca com um problema para a arte: o Parangolé e a participação do espectador, um marco na arte brasileira, que faz dele o mais brasileiro e o mais universal dos artistas.
Lina chega na Bahia com a cultura e a arquitetura moderna europeia, a dúvida não explicita com a funcionalidade e um olhar moderno sobre o passado e as tradições da cultura local, mas com uma sensibilidade que surpreendia a racionalidade da arquitetura e do design moderno. Ao se defrontar com a cultura popular do Nordeste e seus produtos repensa o significado da arquitetura, não mais como uma obra individual e sim coletiva que dá forma as nossas experiências e sensações e qualifica o espaço. O arquiteto em parceria com o operário tira partido da técnica e das possibilidades poéticas dos materiais de construção, seja: concreto armado ou madeira. Desse encontro de culturas inventa a escada do Museu de Arte Moderna da Bahia. Que não sabemos direito se é realmente uma escada, uma escultura, uma instalação ou um monumento a esse milenar invento do homem para dominar o espaço.
O centenário de Lina Bo Bardi poderia ser um pretexto para se interrogar o que seria uma arquitetura moderna brasileira. Diferente da identidade nacional buscada por Lúcio Costa, a arquiteta de origem italiana, antes de mais nada, reconhece que o homem confere significado a sua existência também através da arquitetura, sobrevive ao naufrágio dos valores modernos e libera a arquitetura da ordem estrita da funcionalidade, como uma expressão do pensamento e do sentimento, possivelmente uma herança do expressionismo. Gropius, o criador da Bahaus, na leitura do historiador Giulio Argan, curiosamente, defendia uma arquitetura sem fins práticos.
Nem mesmo a arquitetura de Niemeyer com suas curvas sensuais inspiradas na geografia do Rio de Janeiro e na anatomia feminina  é mais brasileira que as edificações  despojadas com a marca do inacabado de Lina Bardi. Na minha percepção, o pensamento da arquiteta é projetar e edificar para recuperar o sentido da arquitetura ou a paisagem de uma subjetividade negada pela objetividade moderna. Compreender a singularidade da obra de Lina é aprender uma lição: a arquitetura antes de ser habitável, é ideia.

Almandrade
(artista plástico, poeta e arquiteto)

 

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